Diz-se no nicho comercial e patrimonial que balanço é o relato em números de ativos e passivos de um empreendimento. O que se avalia num empreendimento comercial não se aplica no que diz respeito ao pessoal. Ou não deveria.
No que nos toca, e no que toca a mim, e o que toca a ti que vem aqui seja lá por qual motivo, no que nos toca, não há nada em nós que busque lucro sem antes ter sido estimulado e introjetado para tal, como lógica natural. Nada em nós, seres complexos e de uma biologia sem igual, nada admite o lucro e a acumulação como desejável, muito menos de maneira parasitária como a tênia e os donos dos meios de produção fazem muito bem. Nada em nós se aplica em retorno, nada em nós nasce para o negócio, como a função que maneja a fome, nada em nós fundamentalmente contabiliza, nada, absolutamente nada no mais profundo de nosso espírito humano tende a dar-se a render. Porém, sabe-se que se vive contabilizando todas as áreas da vida, não por nos fazer ter um balanço para bem gerir a vida e um consequente manter algum ilusório controle, e mais adiante o rótulo do sucesso. Se vive a contabilizar por que não nos é permitido inventarmos uma outra lógica, ainda que se acredite que há como empreender com a própria vida, contabilizamos e lidamos até em indicadores, como se faz a uma empresa.
A falência, ainda que no âmbito empresarial não represente diretamente a perda total de tudo que se tem, por causa das típicas proteções jurídicas da burguesa intenção do direito, fazendo assim parecer que há algum compromisso com a função social do trabalho, assim nos vendem e compramos, e, ao falirmos pessoalmente, como um negócio de muito maior risco, não temos amparo de direito algum, nada nos oferece carta de segurado. Não temos CNPJ, nem somos Sociedade Anônima. Quando falimos, nessa economia que fizemos de nossa própria vida, a falência vem como um rombo irreparável na sede da vida de nossa empresa, onde armazenamos, e há afetos loteados. Enquanto a empresa, a de CNPJ, se recupera em sua saúde com o tempo e o amparo estatal (pasmem), enquanto isso, nós, somos obrigados a encararmos a completa falta de recursos, o vazio de uma falência até daquilo que o amor deveria nos cobrir ricamente, o que dirá de dinheiro.
Dentre tantas formas de ser e estar, é cada vez mais comum lidarmos economicamente com a vida. É cada vez mais lógico se enfrentar consigo mesmo como um supervisor, que ao abordar o colaborador, o funcionário, o empregado, faz com uma preocupação instrumentalizada. Se interessa em saber como está não para que se tome alguma providência para o bem viver de um outro, mas para que seja possível fazê-lo produzir a contento e cada vez mais.
O discurso empresarial nos cerca não apenas dando demonstrações de que pelo poder da vontade, do mindset ajustado, da visão de águia que busca o alvo certo da prosperidade, como na teologia, seremos felizes e completos. O discurso da busca do sucesso está no campo dos sentidos assim como o lucro está para o capital. Lidamos com a vida como se fôssemos pejotizados por nós mesmos. Funcionários sem direitos, de nós mesmos, novos escravos de nós mesmos, até amamos como ama um liberal. Quando esse ama.
É de amar um amor funcional que ama um liberal, com a pretensa exatidão numérica, com uma paixão eficaz, uma eficiência em ser e alguma efetividade do gostar que se empreende no mundo das relações afetivas. A medição dos riscos, a estratégia do quanto se pode deixar consumir, o quanto preciso ter de reserva, o quanto aplico e o quanto me renderá não está mais restrito, ou nunca esteve desde que o capitalismo nasceu, ao mundo da moeda. O trunfo foi tornar os sentimentos como moedas que rendem ou perdem valor.
Quanto de estofo preciso ter para amar seguramente, pensamos enquanto traçamos as linhas de nossas projeções. Mediante o quanto a trajetória dos meus gráficos crescem exponencialmente, ou decrescem vertiginosamente, faço o balanço do quanto estou investindo e do quanto sou investido, de insumos ora caríssimos, ora desvalorizados no mercado, os afetos entram em crise, perdem pontos na bolsa dos nossos valores cada vez mais padronizados.
Ainda que vivamos na tentativa de não sermos empresários de nós mesmos, dificilmente escapamos de nos sentirmos e assim vivenciarmos a falência, como uma sensação, não a falência que declara os donos de lojas assaltantes, brasileiras ou Americanas. E é quando percebemos que já admitimos e declaramos falência, e caímos da ilusão, e a realidade que nos abate como uma dor, de que sentimos que de amor falimos ainda que nem de amor falamos. A sensação de não sabermos mais como manteremos nossas funcionalidades, de certo modo importante perdermos tudo sem termos nada, e que ainda sem termos nada, temos ainda mais a perder, e pensarmos antes de deitar a cabeça no travesseiro em como atenderei minhas demandas, como honrarei os fornecedores dos meus prazeres mais básicos, tudo isso importa para um importante mercado de tudo. Onde tudo que é mercadoria tem seu devido mercado. Daí vem a obrigação de que em tudo devemos pensar o quanto que poderemos obter de capital.
Essa crise, nesse arco da vida, imersos numa lógica de mérito, do quanto fizemos por amor, do quanto fizemos quando amamos, do quanto nos dá de retorno o amar, é nessa crise, dizia, que temos a chance de notarmos que não existe de fato mercado algum, pois nem a nossa falência, certeza de nossa desgraça, é fruto de uma sofisticada manipulação da realidade que nos convenceu de que naturalmente esperamos o acúmulo. Tudo não passou de uma ideia e de uma lógica que não atende nem a si mesma. Ser contra o cúmulo da perversidade em que um sistema de contos nos distraem para nos adormecer num sono profundo, deve-se estar contra a especulação dos afetos, o flerte financeiro, os juros exorbitantes da dívida, de abrirmos uma sociedade, decidirmos dividir o mesmo nicho de mercado, o mercado incerto de uma vida à dois.
É quando chegamos à falência desse empreendimento, dessa desilusão acachapante, que temos a oportunidade de fugirmos da lógica financeirizada e desse amar liberal, desse querer produtivo e exploratório, dessa parceria societária feroz, desse arrojado modelo de dizer eu te amo e diante disso, ter riscos controlados, impactos medidos, indicadores, parâmetros, controle. Caímos numa grande mentira e os afetos já estão no campo do capital. Eis aí mais uma usurpação imposta pela lógica que nos rodeia e vivemos, como água no aquário, peixes que somos.
Mediante a conjuntura é preciso amar como um guerrilheiro. Pois só um guerrilheiro confia tanto no triunfo que ama, que caminha até ele armado e clandestino. E ama.
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