Carta em caso de morte
Queridos e Queridas.
Todos amados pelo amor que me coube dedicar nessa trajetória de vida e morte todos os dias.
Morri já muitas vezes e hoje faleci de novo e lamento muito ter perdido mais essa vida. Ou não. Começo a outra vida na esperança de que seja um inferno menos doloroso que a própria vida.
Morri sem expectativa de ir para o céu. Sem vontade de ir para o céu. E se eu for, saibam que foi contra a minha vontade. De coração, deixo textualmente, declaro e dou “fé”, que não quero ir para o céu.
Não vou aguentar estar num ambiente cheio de coisas verdes e amarelas pela eternidade. Já foi cruel passar 4 anos. Mesmo que o céu seja igual o da grama bem aparada da novela A Viagem, também não quero. Me pareceu chato quando assisti.
Também não quero ser a personagem espectral de Alexandre, torturando a mente daqueles que estão enfraquecidos pela própria vida cotidiana.
No máximo, se me for possível, farei gosto de vê-los sem roupa no banho, ou caindo, ou transando, ou colhendo exames de fezes. Vou rir de todos vocês sem querer aparecer ou dar calafrios em ninguém. E também farei gosto de derrubar as panelas da casa dos que me assustaram durante a vida terrena. Vocês vão saber quando for eu.
Ah, e também vou frequentar uma igreja evangélica que faz um espetáculo todo Natal. Vou tentar derrubar o pastor de vocês com uma pernada. Vi no Ghost que dá pra se concentrar e meter a porrada fisicamente. Espero que esse filme americano não esteja mentindo dessa vez como faz quando fala de Segunda Guerra Mundial e comunistas.
Não quero que alguém psicografe nada. Com todo respeito. Eu não vou ficar ditando nada. Eu quero ficar zanzando pelas ruas vendo vocês se rebolando pra vencer esse sistema falido.
Quero que lembrem que sempre tentei as coisas. Fui valente muitas vezes. Mas muitas vezes não é o bastante.
Que meu filho leia o que já escrevi para ele. E tem um caderninho bem pequeno em uma das minhas caixas. Nesse caderno eu converso um pouco contigo, meu filho. Eu vou estar pelos cadernos. Você vai achar.
Não quero tristeza. Já falei aos que permaneceram que eu seja cremado. Mas antes, vejam se tem algum órgão meu que preste e façam bom uso. Você que receber, viva a sua vida amando e lutando. Quem ficar com o meu coração, lamento. Ele vai marcado demais, mas acho que ainda dá um caldo.
Ao meu irmão Antonio Felipe, que escreva sobre mim. Eu ficaria muito contente. Quem sabe você não ganhe dinheiro escrevendo sobre minhas desventuras em série.
À Nathalie, meu muito obrigado por tudo. Te amei com a alma e com força. Espero ter feito muito e acertado pelo menos duas vezes, como um relógio parado acerta sempre duas vezes. Case, tenha filhos, que seu amor seja honrado sempre.
À Beatriz, cuidado com o “tchubirube”. Ele é muito esperto. Obrigado por ele.
Aos meus familiares, os que possuem o mesmo DNA que eu, foi mal. Não deu pra ser o que vocês queriam. Pelo menos tivemos boas brigas e adrenalina. Não rezem por mim. Vocês estarão bloqueados se tiver algum sistema de recebimento de prece. Mas fiquem bem. Ou não.
À Erumtrio. Vocês não são ruins. Nem são bons também. Toquem mais vezes.
Aos comunistas que conheço e admiro: a luta continua.
Ao Lula: obrigado, barbudo! Você é gigante.
Aos eleitores de 2026: votem no Léo Péricles. Ele é um cara bom. Vão por mim.
À UFAM: Obrigado, meu sonho. Que te façam bem.
Ao São Paulo Futebol Clube: vocês me deram pouquíssimas alegrias nos últimos tempos. Melhorem!
A História: minha amada. Não consegui te marcar. Desculpa por isso.
Finalizo com a torcida que eu encontre:
Rubem Alves pra gente conversar sobre a beleza, como não deu aqui na terra. Que eu encontre Ernesto Guevara, minha inspiração de ser humano. Que eu encontre Ho Chi Minh, pra gente rir de americanos. Que eu encontre o Boechat, jornalista, talvez o único que gostei da área. (To brincando). E o Victor Jara.
Que eu encontre Dona Maria pra matar a saudade. A única que me entendeu completamente.
A todos que amo a existência. Espero vocês onde eu estiver.
Foi um prazer conhecer vocês (nem todos).
Prendam os fascistas e mandem eles pra mim.
Se organizem.
Não morram agora.
Obs 1: carta redigida por precaução devido ao grande número de oportunidades de se perder a vida no Brasil de hoje.
Obs 2: não vou me matar, não vai ser tão fácil assim.
Obs 3: Essa carta pode mudar.
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