“Mas é que quando eu me toquei, achei tão estranho. A minha barba estava desse tamanho. Será que eu falei o que ninguém ouvia? Será que eu escutei o que ninguém dizia?
Eu não vou me adaptar.”*
Um estranho chegou e deitou no meu sofá
Um sujeito muito à vontade
De um jeito tão tranquilo
Que não sei nem como lidar
Com as pernas esticadas e o meu jornal a folhear
Coisa tão surpreendente quanto o ato de falar
Que ainda tenho jornais em casa
Na era do celular
Olhei e não pude me calar
A primeira pergunta comecei a elaborar
Ao abrir a boca
Ele fez o gesto de calar
O dedo reto sobre os lábios
Como no aviso hospitalar
- Silêncio, rapaz
Não és tu quem vais argumentar
Disse ele em seguida
Com uma voz tão similar
A que soa na minha mente
Quando me ponho a pensar
- Meu rapaz chegou a hora
Tu precisas se arrumar
Essa casa é minha agora
Chegou a hora de mudar
Sorri pra ele com a piada
Ele sério a me olhar
Perguntou se era certo
Do corpo errado se apossar
Meu rosto se fez tão sério
- Onde você quer chegar?
- Como disse, camarada
Não cabe a ti o questionar
Se eras tu tão certo de não ser
mas de sempre estar
O que ainda aqui tu queres
Se não te cabes mais ficar
Nesse instante tão confuso
E com sua voz familiar
Disse ele de onde vinha
Vinha de dentro do pensar
Retruquei com muita afronta
Que ele estava a delirar
Que saísse da minha casa
Antes que o arrancasse de lá
Riu com deboche da minha cara
Escarneceu num murmurar
Disse a ele: Fale alto!
Seja homem de aclarar!
Ele perto do meu rosto
Um sorriso a liberar
- Saia dessa casa, seu moço
Não és mais bem vindo nesse lar
Seja bem honesto consigo
Me reconheceste ao olhar
Sou você que se mudou
Estou retomando o meu lugar
Leve tudo o que quiseres
E o que for útil pra usar
Mas saia o mais breve
Pois já estais a incomodar
Meia-volta dei na hora
Juntei tudo sem teimar
Fui embora desse corpo
E não pretendo mais voltar
Àquele "eu mesmo" mais novo
Pronto pra tudo mudar
Serei grato para sempre
E não volto mais pra lá
*Nando Reis e Arnaldo Antunes
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