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Foto do escritorRodrigo Souza

Caçadores



É muito interessante o momento exato em que percebemos que não acreditamos mais, como acreditávamos enquanto crianças (que nunca deixamos de ser), de que estamos certos de alguma coisa. Ao mesmo tempo, depois de nos apercebermos disso, dessa elementar constatação, a esquecemos solenemente e deliberadamente. Optamos por não olharmos um palmo a mais de realidade, dentro do espaço que se possa chamar ainda de pessoal e da personalidade. Como o caçador, com apenas um globo serrado, apenas os tendões em pedra, tocando o chão com um dos joelhos, a fibra esticada, a madeira do arco estalando som de fina madeira, esperamos que a pontiaguda flecha acerte o coração da caça. Disparamos. E a flecha que voa aguda, acentuada, finca no centro do coração quente e pulsante de mais uma oportunidade de cairmos, mais uma e outra vez, naquilo que achamos saber, naquilo que pensamos raciocinar, coisas que temos como certas. 

A ilusão de que estamos no controle de algo é comovente. É nosso sonho de criança. É doce. É o engano mais cheio de familiaridade. É o modo com que nos sentimos bem. É o que nos permite funcionar dentro de uma estrutura tão confusa. Onde apesar de todo esforço de linguagem, nada nos oferece nem chance de explicarmos, de nos explicarmos a nós mesmos. Não sabemos lidar com o fato de que há algo em nós tão imenso e desconhecido. Vejo como uma represa com comportas. Me permita o exemplo. Vez ou outra, quando as abrimos, ou elas se abrem sem nos consultar, algo de represado desafoga o alagado. Há algo em nós que não encontra palavra. E a esse desencontro chamamos angústia. E a essas angústias, não as chamamos, pois elas vêm à galope sem serem chamadas, dizemos ser isso algo como sentimentos. Sentimentos esses, que várias vezes achamos saber dizê-los, desconhecemos os conceitos. Voltamos ao ponto, e repetimos, como criança, sem palavra alguma que saiba dizer. Não há como explicar. 

Como não há explicação que caiba. Não há peça que encaixe. E em não havendo tais peças, as criamos. E esse é o momento que, mais uma e outra vez, nenhuma palavra diz o que queremos dizer. Não há canção, não há poema, não há em biblioteca alguma, em civilização de qualquer tempo. Nada me dá tudo para que eu crie o suficiente. E tudo nos falta de tão precários que somos. Nos falta recurso. Nos falta de um tudo. Somos miseráveis de uma linguagem que atenda, ainda que minimamente, o que se movimenta dentro de nós.

Estamos nesse estado infantil de desalento. De não termos nenhuma imagem segura de nós mesmos, e não há outra fonte que não seja a de recorremos ao limitado vocabulário garimpado durante toda a vida. Aprendido a duras penas. Custando desamor, frustrações, despedidas e chegadas, abandonos e laços de força, quedas e períodos de firmeza. O cansaço é real, o tempo feroz, o dia é longo, a jornada é difícil. Reúne-se toda ortografia, morfologia, sintaxe, léxico, dicionários, traduções, odes, odisseias, Camões, Veríssimos, Pessoas, Buarques, Velosos, Gilsons, Traps, Raps, sambas, cartas, gravuras, rascunhos, borrões. Se aprende a conjugar, a redigir, diagramar. Digital. Analógico. Chats. Algoritmos. Playlists. Lê, resenha e monografa. Reza. Se apega. Bate um tambor. Faz a novena. A crisma. Comunga. Ceia com o mestre. Desenha o pentagrama. Lê o Alcorão, a Bíblia, o fundamento. Peca. Perdoa. Dorme. E acorda pra dizer: Eu não faço ideia do que estou fazendo, mas faço. Não faço ideia do que estou caçando, mas caço. Não sei de quem são essas flechas, só as disparo.  

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