Ele passou o dia em repouso, quieto.
“Tá apaixonado, Crispin?”
Disse a mãe dele enquanto já estava em sua segunda viagem do dia, cheia.
“Não to muito motivado pra nada hoje, mãe. Só isso.” Ele responde com o desdém típico de todo adolescente. Afinal, já se encontrava na crise das milhares de vontades hormonais.
Naquele dia, inclusive, no auge dos seus 12 dias de vida, a tenra idade, descobriu que mais perto da maturidade chegara e que da infantil docilidade se afastara. Pouco se movimentou esse dia.
Seu pai, Gerson, um senhor muito nutrido, de porte muito avantajado, mas muito paradoxalmente doce, no entanto sempre muito sério (embora sensível às coisas da vida), um dia disse, num sussurro: Crispin, se você tem algo para me dizer, estou aqui. E sorriu com os olhos.
Enquanto a tv ligada passava qualquer coisa que nenhum dos dois prestava atenção.
O jovem nada disse, com olhos também sorriu. Nem o pai insistiu. Foi como se nada tivessem dito.
No dia seguinte Crispin resolveu sair para, talvez, encontrar a causa de sua apatia e falta de fome. Foi para a parte mais ventilada do lugar que vivia. E lá estava ela. Ela.
Tirando do chão o sumo líquido, de brilho intenso e com sabor semi-salgado do fruto daquela terra.
Ela se lambuzava de maneira nada desesperada, mas com a intensidade de quem quer retirar cada nutriente dali, como quem tem uma atenção microscópica para tudo.
Ousou Crispin se aproximar um pouco para ver mais de perto seus pêlos negros, sua pele branca quase translúcida que o sol revelava toda transparência quando seus raios batiam no seu organismo, corando quanto de mais vida se nutria.
Os dois com 15 dias de vida. Nasceram quase no mesmo lugar. Seus milhares de irmãos não tinham ciúmes dela.
Seus olhos enfim se encontraram e ali cruzaram um limite aterrador dos 3 segundos de olhar.
Para quem não sabe os 3 segundos de olhar apaixonado equivalem à 10 minutos de calor na região peitoral, de suor nas palmas das mãos, de coração acelerado, de pulso frenético. É como a um iminência de afogamento.
O nome dela, ele ouviu sem querer. Era Lena.
Só não sabia se era Lena de Helena, Lena de Lenaide, Lena de sabe-se lá do quê. Ele só sabia que havia gostado. De tudo. Dela toda. Do seu nome. Lena.
Lena estava vermelha um pouco do sol, um pouco de se sentir observada, plena de vida, daquilo que pulsa nas veias e é bombeado pelo coração dos homens.
Naquele dia Crispin não teve a audácia de chegar mais próximo de Lena. Decidiu voltar para casa com a mesma energia de quem ama e esmorece por amor. O amor eterno da adolescência.
Lena o viu.
Mais tarde assumiu para uma grande amiga que o viu e desejava que ele se aproximasse naquele dia. Porém, nada aconteceu, pois devia estar interessado em outra, já que era um jovem muito bonito e de um corpo muito bem desenhado e desenvolvido.
Enfim… achou melhor esquecer. Afinal, "a vida é muito curta para querer quem não nos quer", concluiu Lena, resoluta.
Enquanto isso, Crispin, que já notava as transformações físicas da fase crítica juvenil que passava, pensava e pensava.
Tudo cresce no corpo nessa fase, até os sentimentos. Tudo um tanto desmedido. E como um típico jovem cheio de vontade imaginou Lena muitíssimo próxima de seu corpo.
Enquanto se tocava com impaciência de um corpo que clama urgência, alucinava tocar o corpo de Lena. Seu corpo fervia a fervura que era novidade todo dia e os toques ganhando constância, uma cadência. Repetitivo, conheceu zonas do seu corpo que só imaginava Lena tocando e querendo. Uma doce ilusão para ele que mal sabia. Lena também o queria.
Foi desnudando a já nua pele de Lena, em pensamento.
Ele imaginava seu beijo quente, com gosto de gente. Com gosto de vida. Imaginou sendo um ser só com aquela garota. Os micro pêlos se roçando, como se dali o fogo fosse possível. Um calor, um calor. E queria adentrar a sua existência.
Crispin suspirava Lena, que também suspirava Crispin na intimidade de seu quarto.
Ela também fervia ao pensar em Crispin. Mesmo sem nunca ter escutado a sua voz. Mesmo sem nunca ter sentido seus membros entrelaçando os seus. Tomando seu corpo. Ardia, a jovem. Ardia de tanto sentir e sorvia da íntima parte de seu corpo qualquer coisa com a viscosidade deslizante. Um som delirante soava enquanto tocava-se. Era como um trem que aos poucos pegava rítmo. E vai avançando os trilhos.
Aproveitando cada momento da vida urgente de todo ser, Crispin suspirava, Lena gemia. Seus pais notavam a demora dos banhos, o quarto trancado.
Diva, mãe de Crispin, dizia com a sabedoria de uma deusa de 32 dias de vida “Gerson, Crispin precisa saber de certas coisas. Ele já vai para seus 20 dias de vida”. Gerson meneava a cabeça e afagava seu bigode consentindo que sua companheira de uma vida toda, como sempre, estava certa. E, mais uma vez reconhecendo a certeira mulher que a vida lhe havia dado, um beijo ele lhe deu com a mesma seriedade de sempre. Um beijo na testa. Um beijo de quem ama até os pensamentos da amada.
Mais tarde Gerson sentou à beira da cama de seu rebento, que rebentava pelos poros a angústia de não saber lidar com tudo isso. Seu pai com muita calma disse:
- Meu filho. Eu sei o que você está sentindo. Eu já senti isso um dia por sua mãe.
- O quê, pai?! Eu to bem.
- Eu sei. Você está vivendo aquilo que queima a gente por dentro. Que faz a gente pensar e pensar. E querer. Pense na curtíssima vida, filho. Desafie a sua existência. Coragem. Quem é ela? Ou ele?
- É, pai. Eu sei que você sabe o que tá acontecendo, mas eu não queria falar sobre isso.
Depois de um suspiro doído de quem sabe que não vale a pena nada esperar, bateu nas costas do filho com a vontade de dizer: vai sofrer teu sofrimento e aprende, filho. Mas antes de sair, em tom amigável e um meio sorriso:
- Certo. Saiba que você pode contar comigo, ok?!
Crispin deu silêncio como resposta.
Calado ficou não só esse dia.
Ficou silente sobre o que sentia.
Lena, desesperançada, vivia a vida.
Era manhã de sábado.
Um dia de chuva. Dia de grandes dificuldades, como todo dia de chuva. Por que, além de tudo, chuva faz pensar.
Chovia e uma bruma, como se fosse aquela do mar, inundava os pés de todos. E todos se agarravam no que podiam para não se perderem uns dos outros.
A tal bruma, cheia de grandes bolhas, com cheiro intenso, quase sufocante, foi tomando tudo em volta.
As águas arrastaram Lena, que desencontrava de seus familiares.
Mas, como todo amor anda de mãos dadas com a surpresa, as águas trouxeram para perto de Crispin o corpo desejado de Lena. E a segurou pela cintura.
Foi duplamente sufocante.
Crispin, naquele momento, viu nos olhos de Lena que perdera tempo demais.
O cheiro os inebriavam. Lena pensara estar perdendo o ar e delirando o delírio chamado Crispin. Sentia seu corpo sendo adormecido naquele abraço. Os dois foram se morrendo e se entregando. A água levava o medo. Levava toda dor. Levava silêncio.
E do afogamento do amor o fim de toda dor. Foi a morte.
Todos morreram naquele lugar. Nada restou, a não ser as marcas de um amor que nem deu tempo de amar. É triste, mas há amores que nem cabem numa vida longa, muito menos numa vida curta.
"De sete a dez dias depois, estes ovos liberam as ninfas – nome do estágio do piolho logo que sai do ovo. De nove a 12 dias depois, as ninfas chegam à fase adulta. Nesse estágio, os piolhos vivem cerca de 30 dias e vão se alimentar com sangue e acasalar, reiniciando o ciclo." Fonte: Portal Fiocruz.
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