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Foto do escritorRodrigo Souza

O Profeta



2:30 da madrugada...


…muito vento na janela me acordou. Quem vivia no mormaço, uma quentura constante de cozimento lento e completo sabe o que é deixar o vento entrar pela janela. Tenho certeza que não sou o único a ver essas coisas, pequenas coisas. Não sou uma espécie de paranormal. Só que é assustador saber ver o trivial nessa quadra da vida.


Em certos livros sagrados a figura dos profetas são de máximo poder e grandiosidade no contato com o extraordinário. Eles antevêem aquilo que culmina na satisfação da vontade de seu deus. Não é que antecipem algo, que prevêem. É que lhes é revelada uma imagem que cumpre em parte a vontade divina.

Não vejo nada de extraordinário num profeta.

Me parece muito simples, até. É ver e dizer. Caso não se cumpra a visão, cumprir-se-á a vontade do Todo Poderoso por outros meios. O que ao mesmo tempo me encanta.

Para mim, o que é extraordinário é perceber a trivialidade. É saber das coisas mais comezinhas de um outro ser humano e dotá-las de um valor pessoal, valor próprio, seu enquanto ser que não está naquele outro, e seguir deixando-o ser tudo o que é.

Meu semelhante, ávido por ser feliz e por desfrutar dos prazeres e das tonturas que esses prazeres trazem, é um ser sempre faltante. Sempre sua incapacidade de satisfazer-se totalmente o leva a decisões que transpassam sua couraça de super-ser humano, num mundo onde não se deve ser muito forte para que não seja exaurida e testada a sua força até o final. Nem se deve ser fraco, dado que somos seres em constante disputa, sabe-se lá do quê.

É extraordinário perceber que, como num espelho, meu semelhante é semelhante com bases trocadas para que saibamos voar. Numa ilusão ótica para iludir a vida. É doce perceber que meu semelhante quer amor, assim como quero. Meu semelhante quer amar, assim como quero. Meu semelhante quer reciprocidade, assim como queremos. Meu semelhante não sou eu por muito pouco. E saber ver isso é poderoso.

Somos todos muito sozinhos. Somos um desespero completo por várias coisas que nem sabemos ainda o que são, nem se desenharam para acontecer, nem perto chegaram de se realizarem. Mas logo somos todos um só corpo com a agonia. Somos uma angústia que se deita. Somos seres sozinhos demais.


O profeta Moisés descer o monte com as tábuas da lei não me parece em nada extraordinário, por exemplo. A meu ver, humildemente, poderoso seria Moisés, no meio do turbilhão de poder, ouvindo o som da voz de deus como a de um trovão, sendo lambido por ventos uivantes, dissesse: Hoje tá bonito pra chover!

Isso desmontaria qualquer divindade, não tenho dúvidas.

Seja o deus do velho ou do novo testamento. Seja do alcorão. Seja o deus dos deuses, das deusas. Da Grécia. Do círio de Nazaré. Do Padre Cícero. Não haveria deus que suportasse essa poesia. Ali mesmo outro rumo a história tomaria. E talvez hoje nem guerra na Palestina existiria.


É fabuloso ler

É fabuloso ser lido

É fabuloso tudo dizer

É fabuloso tudo fazer sentidos

Tudo ser possível

Tudo ser passível

de tudo ser compreensível

Numa leitura de se viver

Numa aventura de ser sensível

A tudo de ordinário que nos faça incandescer

De tudo que torna a nossa carne perecível

Uma bela noite tudo esmorecer

E chegar a um ponto de ser tão incrível

Olhar com olhos tristes para o amanhecer

Mas no cair da tarde sentir-se um ser invencível

E toda essa riqueza a nos simplificar

A coisa de deixar ser e se deixar ser

A coisa de deixar-se indo

A coisa de se contentar

Com a coisa de tudo ter


…esse vento todo me fez olhar para fora.

Eram 2:46 e eu disse:


- Hoje tá bonito pra chover.


E choveu.

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