Era impassível. Não havia rasgo algum no tecido do seu pensamento, que era em tiras muito largas. E que se houvesse quem tivesse coragem de puxar um fio, que estivesse pronto, pois rápido brotaria do chão, solene, um desafio.
Quem teria capacidade de empunhar o facão para abrir alguma trilha na floresta dessa sua perturbação, de sua populosa fauna de uma mente selvagem, pronta para abocanhar, em constante e sólidos passos, firmemente perdido. Com toda segurança de estar perdido. Assume assim a sua condição de ser como um piso em brasas.
Queima, solas dos pés. E tudo o que tem é sua máscara de alguma consciência, de alguma racionalidade. É uma mentira que adora usar de estandarte. Que pensava. Teria controle sobre qualquer coisa. Que cartesianizava a própria vida. O que se sabe é que ele não dorme um dia sequer sem olhar no espelho e dizer: O que tu tens comigo? Quem é você? Com uma ira tão desesperada ele repetia as mesmas perguntas até cansar e dormir.
Estava escrito num papel velho e amassado, no abandono de seu quarto:
“Só não vive a se perguntar esse tipo de questão quem muito se aliena de si mesmo. Como não olhar no espelho, e se ver no espelho, e ver que se vê, e pensar que se vê, e supor que se enxerga, ou que finge se enxergar, brinca que enxerga o que no fundo não quer ver. Deseja o breu. Nada vê. Tudo só se consome. No fundo, do fundo, das coisas suas. Prefere o breu, a ver qualquer coisa que se pareça a verdade”
Ele deita, sua mente enverga. O mastro de seu inconsciente, desejo de viver de morrer de viver e morrer, e morrer, a morrer e a gozar nalguma morte. Ele senta na beira da cama e nada vê sob seus pés. Um abismo; nada havia. Somente um apontamento numa caderneta ao lado da cama. A ponta do lápis desafiado. Ponta arredondada de um lápis amarelado, de palavras amareladas, um banzo gramatical, uma desestrutura na linguagem. Uma linguagem amarelada.
Por onde andariam aquelas palavras prenhes de amor que tanto preenchiam caderno e cadernos, pautas, laudas, linhas de rascunhos de um amor possível e de uma aparência muito corada. Tinha viço.
Ele via tudo que queria dizer escrito na sua mente, mas era som, era um alívio mais do que palavras. Ele deixou que aquilo saísse pelas pontas dos dedos, sentou-se e escreveu:
“Preciso de tudo que me traz alívio. Tudo que deságua dessa represa. Me afoga. Me afoga de alívio e cora minha pele.
Que bom ter levantado da cama para poder te escrever coisas que nem se aproximam do que sinto e sei. Assim desviar o foco da verdade: que, mesmo não tendo muita certeza, desconfio que ainda amo” disse o velho na diagonal da folha.
Era um senhor. Curvado. Extenuado por ter de carregar o peso de seus pensamentos por tantos anos. Ele levantou. Seu pijama amarrotado como sua pele. Enrugado era seu rosto, como se cada palavra que pensou e não disse produzisse uma rasura na folha de seu rosto. Era triste a feição de seu rosto. Era aquela bonita tristeza de alguém que não amou o quanto poderia ter amado. Era belo o seu rosto. Era belo como aquela lágrima que cai bem devagar e algum raio de luz resvala ali. Coisa que nunca se viu, mas sempre se vê em pensamento.
Via-se ali um velho. Um velho que não amou tudo o que poderia ter amado. E a pior cadeia era a de seus pensamentos. Sua pena era revisitar as mesmas paredes de seus pensamentos.
Se põe de pé e lava seu rosto com a lentidão de um senhor sem pressa. Ao olharmos para ele, não há quem acredite que se tratava de um jovem ansioso. Sua vida adulta era entre a aceleração de sua mente e a lentidão dos seus passos. Tinha uma vida mental muitíssimo agitada. Se agitava durante o sono, coisas que só as mulheres com quem conseguiu se entregar lhe reclamaram. “Tu tens espasmos enquanto dormes. Parece que passa mal.”
O corpo parecia querer compensar todo o tempo em que fez a economia de sua própria energia. Havia uma descompensada distribuição de energia naquele corpo, que em grande volume ia para o terreno da mente e lá percorria tudo. Corria tudo como cachorro há muito preso. E sonhava sonhos e delirava sonhos.
Um dia o jovem sonhou que se sentava na cama. O chão era um abismo. Ele se levantava lentamente. Sem saber como havia chegado à pia, se olhava no espelho e dizia: O que tu tens comigo? Quem é você?
E lava seu rosto lentamente como se seu rosto fosse um amontoado de rasuras. Escrevia numa caderneta que estava ao lado da cama o seguinte:
“Me afoga de alívio” algo assim…
E era um sonho recorrente na sua juventude. Até que acordou.
O velho retomou seu dia. O moço retomou seu dia. Suas cozinhas eram singelezas. Para alguns parecia pobreza. Os cafés os faziam fortes. Um na firmeza das jovens mãos. Outro nas certezas de ancião. Pequenas tarefas. Pequenas coisas a serem feitas tais como sobreviver num tempo em que tudo vai morrendo. O ar está morto. O que se respira é o odor do corpo putrefato do tempo. O mundo está morrendo.
Jovem que sou, disse o velho, vou ao encontro das pessoas bonitas de tristeza que compram coisas e se enchem de vazio. Foi ao centro comercial que fica a alguns poucos metros de sua casa. Ia lá para ver como cada um admitia sua própria execução homeopática. Como se morria nesses tempos em que está chegando a hora de morrer ele mesmo. Não demonstrava medo de morrer. Não deixava nenhum traço de medo, nenhum temor em desaparecer. Só lamentava que, na sua vez de morrer, coisa que a cronologia impunha, havia muitas formas de falecimento. Logo na proximidade do fim de seus dias havia possibilidades muito diversas de se morrer. O sonho de morrer adormecido por um sono final, naquele momento, lhe era impossível. Talvez por isso deitava-se constantemente esperando ser pego de não-surpresa pela morte. Quando dormia, sonhava muito. Acordava exausto de seus sonhos de muitas atividades. Sonhos esses muitas vezes repetidos e repetidos e repetidos. Como o sonho em que é jovem e pede que seja afogado de alívio à beira da cama.
Sentou-se num banco longo. No meio do centro comercial. Na outra ponta, uma moça de cabelos escuros olha através do ângulo mais agudo dos seus olhos e vê aquele velho - senhor - homem. Ele olha sua roupa quando nota que ela não mais o olhava. As figuras de personagens que estampava sua blusa ele não reconhecia, era algo de pessoas mais jovens - atentas - legais, era algo que também não combinava com o rosto dela, poderia se dizer até que nem ela mesma reconhecia as personagens de sua blusa. Nem o tom grave do cenho combinava com o rosto propriamente. Nada combinava ali, melhor dizendo. O jovem senhor apruma seu corpo no banco e pigarreia para quebrar o silêncio. A moça se afasta, mãos nos bolsos.
- Dia quente. Diz o velho jovem - homem - senhor.
- (...)
Sabe-se que em qualquer situação, responder a esse tipo de constatação abre um diálogo muitas das vezes enfadonho e cheio de considerações dispensáveis. Mas sem ao menos se deter a alguma formalidade disse:
- Você está sonhando. A moça - mulher - senhorita, não tinha expressão no rosto.
Rindo. Ele se aproxima do centro daquele banco de praça sem praça. Ela tira uma caderneta do bolso. Olha para aquele bloco. Ele estende a mão como quem recebe uma oferta em moedas. Ela rasga uma folha e entrega ao senhor - jovem - homem. E na folha fina estava escrito:
“Me afoga de alívio”
Acordou o jovem - rapaz - homem. Sonhara que era velho e recebia um recado de uma moça - mulher - jovem. Ele anota no caderno deitado à sua cabeceira: “Me afoga de alívio”. Era noite. Dormiu à boca da noite desarrumando seu sono. Cedo demais para continuar dormindo. Tarde demais pra continuar ardendo. Foi se banhar. E ao olhar no espelho se pôs a perguntar: O que tu tens comigo? Quem é você?
E a água escorria pelo seu corpo de pêlos negros, formando desenhos no movimento da água. Escorria e cachoeirava nos seus lábios. Parecia levar algo de concreto da massa de seus pensamentos. Sobrava uma sensação que lhe pareceu um abraço sem braços. Desconfiava estar sentindo algo que terminaria num morrer. Ele está desconfiando de que problemas cardíacos se avizinhavam. Mas não era no peito. Muito menos era dor. Não sabia dizer, mas desconfiou de amor.
Saiu. O jovem - rapaz foi até o restaurante em que se presenteava todos os meses para ter algum estímulo além de pagar as contas. Um garçom muito magro, de olhos saltados da face, parecia atento a tudo, entrega-lhe o menu. Ao abrir, o jovem lê que o prato principal daquela noite se encontrava ilegível. Ele tenta decifrar apertando seus olhos, ajustando um foco que não encontrava. E pergunta ao garçom.
- Senhor. Eu gostaria de saber o que está escrito aqui. Não compreendo.
- Então o senhor não poderá fazer o pedido.
Ele ri imaginando alguma brincadeira para logo ser oferecido algo muito caro. O garçom permanece o farol que havia se apresentado desde o início. Imóvel e atento.
- Eu acho que não entendi a brincadeira. Perdão.
- Não há nenhuma brincadeira aqui, senhor - homem - caro.
- Então quero pedir outra coisa do menu. Dê-me aqui.
- O senhor está sonhando. Disse o garçom.
Acorda o senhor - homem - velho. Não havia ido a lugar algum. No sofá da sala adormeceu como é de praxe a todo senhor de certa idade. Mesmo em se tratando de um jovem-senhor.
Voltou ao seu estado impassível onde não havia rasgo algum no tecido do seu pensamento, que era em tiras muito largas. E nunca houve gente de coragem de puxar um fio, e que estivesse pronto, pois rápido, solene, o desafio de entender que ele, dizendo em voz alta:
Sonho comigo jovem, assim como sonhava enquanto jovem comigo estando velho. Melhor dizendo... Sonho comigo jovem. Assim como sonhava, enquanto jovem, estando velho. OU ainda. Sonho comigo, jovem. Assim como sonhava enquanto jovem, estando velho. Será se sonhei esse tempo todo comigo mesmo no passado recente? E sonhava enquanto jovem comigo que aqui estou, hoje? Será se vivo a receber o mesmo pedido desde sempre? Sempre a me convidar ou me pedir “Me afoga de alívio”? Tenho tido essa impressão muito mais constantemente. Tenho notado que muito do que sonho hoje, é sobre algo que sonhei jovem.
No cochilo do almoço, sonhava o jovem - senhor - rapaz. Sonhava com aquele senhor - homem - velho. Até nos mais curtos sonhos sempre lhe era possível sonhar. Aquele raciocínio ecoado no sonho ocupou a sua mente por muitos dias. Ao ponto de fazê-lo sonhar o mesmo sonho muitas vezes. Até não saber mais se era velho, nem se era moço. O Velho. O Moço. O velho e o moço.
(inspirado pela música do ano de 2003, do álbum Ventura "O velho e o moço" - Los Hermanos)
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