“Não é possível subjugar homens sem logicamente os inferiorizar por completo.”
Frantz Fanon
Diga, mas diga o que convém dizer. Fale, mas só o suficiente para não afrontar. Cale, mas o bastante para dar espaço para que Outro diga, fale e cale por ti. A crise do dizer e do não-dizer passa pela ridicularização da poesia, que pouco se escreve dos dias atuais. A pouca beleza escrita fica a cargo de uma elite muito restrita, não surpreendentemente limitada, repetidora do centro europeu, régua do mundo. O que é além ou aquém disso, não passa de uma inutilidade. Há um constrangimento impingido permanentemente, quando numa sociedade que vive das mais brutas violências e a morte é papo de sarjeta, manifestar com alguma sensibilidade, com algum tino sensível para o espírito humano, com algum interesse no compartilhamento dos absurdos mais íntimos e incompreensões mais francas, se torna uma maneira de humilhar. Quem é o pobre para que possa falar de algo que não seja a fome, escravidão e doença.
Em outras palavras, hoje não é proibido ter inspiração para alguma singeleza de alma, o proibido é manifestá-la sob a condenação de estar sendo inútil, por não resultar em valor monetário, por não prover sustento físico, apesar do sustento ínfimo de alguma poesia, alguma representação gráfica, um rabisco que seja, o saciamento impossível para logo depois necessitar do mais básico que é permitir-se, necessitar da mais básica arte novamente e de novo.
Foi preciso ridicularizar a poesia do pobre, no pobre, do e no paupérrimo, do indolente, do desalentado, do miserável, do malandro, do desempregado, ao passo que se aplica em exaltar e replicar a imitação ridícula, emulando a única miséria que importa, que é a miséria de quem tem a posse das coisas elevadas, as almas enobrecidas, a dor da fidalguia, da burguesia. Foi preciso rebaixar a poesia do zé ninguém, para que a produção insossa de uma elite tivesse algum destaque e respeito, pois pela própria força de sua criação, jamais chegaria ao conhecimento da periferia do mundo.
Inferiorizar o sentimento e o sentir a dor de qualquer sentido, foi uma maneira de dominação que não prescinde o constrangimento, e pela via do trabalho por uma auto-estima abalada em constância, pela via da perseguição e do encarceramento do preto, do favelado, do periférico. Sujeitos a todo tipo de sevícias, ao pobre, ficou proibida qualquer possibilidade de ter a aplicação de sua verve como arte. Não só deixar morrer sem amparo, sem alimento, sem saúde plena e moradia, mas matar a chance de dizer que ama, de dizer que se arrepende de uma paixão, de morrer e viver de amores, de dizer que se entregaria de corpo e alma ao objeto do desejo mais íntimo, de chorar, de lamentar, enfim, de padecer poeticamente através de qualquer forma de poetizar.
E aqui, chego ao ponto que queria chegar, ao argumento que me fez escrever toda essa introdução. É preciso dizer que coube ao samba ser a expressão poética das mais complexas, demonstração das mais afetuosas, diálogo dos mais ternos, relato de romance dos mais carnais, contrição de fé das mais fervorosas, sorriso aberto dos mais honestos, tristeza castigante das dores mais doloridas, ritmo frenético da mais perfeita cadência. Muito já se escreveu sobre o samba. O próprio samba escreve sobre si, e canta. Mas cabe reafirmar que coube a ele, sintetizar em acordes, letras e som de tambores aquilo que foi, é e continua sendo negado para uma classe. Não direi nada melhor do que já foi dito sobre o samba, pelo próprio samba. Mas posso dizer que, como o tempo, o samba também é um deus.
A ridicularização dos afetos, as imagens criadas pelo mais bruto preconceito que desenhou o samba como crime, é a ridicularização da própria classe trabalhadora. Negar a poesia, o pranto àqueles que, entre erros de português e falta de métrica literária, pois não frequentam as academias que malham a erudição padrão (não por não quererem, mas por ainda vivermos num país que se nega a compreender ações afirmativas), é subjugar um fator de inestimável conteúdo para que se reverta qualquer opressão. Negar a arte ao pobre, é devastar uma riqueza tão vital quanto a floresta. Ridicularizar o samba é tirar a chance de uma arte genuinamente revolucionária, nascida dos traficados como coisas, dos aquilombados, dos boêmios, dos sambistas, mudar a própria sorte.
Portanto, reivindicar a poesia não deixa de ser uma frente de luta, uma trincheira, que carece ser ocupada. Não há vislumbre de emancipação sem a reivindicação da arte. Só a retomada do direito a se emocionar, a prantear, a meter os pés pelas mãos, e, diante disso, criar sem limitação e condicionamento de classe, pode suplantar a crueldade (criação tecnológica genuinamente europeia) e termos a possibilidade de superação e, por consequência, a criação de uma nova lógica a partir da sofisticação das periferias do mundo. Ou apresentamos para quem nos inferioriza a lógica de nossos afetos ou não tardará a chegada do fim, não só o fim do samba, mas o fim da própria classe trabalhadora. É preciso reivindicar a arte, a poesia, o samba.
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